terça-feira, 6 de novembro de 2012

-das coisas que esquecemos de lembrar-





A exposição “Das coisas que esquecemos de lembrar” de Roberta Stubs e Gislaine Pagotto é um convite a reflexão sobre a experiência do olhar. Em trabalhos anteriores  Stubs concebia suas obras como explorações sensoriais de nossos corpos e Pagotto explorava um olhar para a sutileza de sombras projetadas por objetos de nosso cotidiano. Nesta exposição as artistas flertam com o contemplativo e com o interativo e nos lançam numa reflexão sobre a memória.Temos um filme dentro de um filme, temos imagens ampliadas, temos caixinhas a serem vasculhadas e temos os objetos que concretizam as metáforas articuladas na construção poética das artistas: os monóculos e pequenas caixinhas de papel.

Sobre os monóculos, nos colocamos a pensar no fascínio que eles causam: o de transformar em objeto a evanescente matéria das lembranças. Selamos nestas pequenas lunetas plásticas cenas congeladas em filme e as quais passamos então a guardar na concha das mãos, nos bolsos, nas gavetas, no fundo de armários antigos... E por ser objeto podemos perder o que esquecemos. Mas, por ser objeto, quando encontrado, podemos também lembrar do esquecido?
Que memórias pode uma imagem guardar? O que fica de fato guardado nos contornos de uma imagem? Estas interrogações são reverberações da própria procura da artista. O encontro de Stubs com os monóculos é carregado por um mergulho em sua história pessoal e afetiva: em um deles ela encontrou uma foto de sua mãe que faleceu quando a artista tinha 3 anos. O monóculo é o buraco da fechadura do tempo pelo qual a artista espia. Contudo, a cena capturada em foto conta tanto quanto esconde. E esse prisma plástico, pelo seu próprio modo de operar, parece dar conta de nos apresentar a ambos: para se ver em um monóculo é preciso fechar um olho.
Assim, as imagens expostas nos dão elementos razoavelmente reconhecíveis - como endereços que nos apontam a uma direção – mas elas também guardam uma sedutora borda de imprecisão. Esta neblina que a artista faz questão de manter não é defeito ou acidente de produção. Ao contrário, é efeito estético deliberadamente provocado, como se Stubs quisesse dizer que é neste borrão e não no foco, que talvez habite a resposta de nossa procura. Neste neblinado vão, procuramos o fio invisível sem o qual contas não são colar. Aos contornos esfumaçados pelo tempo, lançamos nossos olhares curiosos e como crianças jogamos o jogo de adivinhar formas em nuvens. Nas franjas destas cenas costuramos um enredo provisório chamado lembrança. Lembrar é inventar.
Ao entrar na exposição, nos deparamos também com uma infinidade de caixinhas espalhadas pelo chão, caixas que nos fazem questionar o estatuto da arte, o endeusamento do objeto artístico e o distanciamento provocado por essa exaltação. Caixas de papel são objetos aparentemente banais, assim como algumas de nossas memórias ou alguns traços da história da arte. Porém, é dentro da fragilidade desses objetos impermanentes que encontramos vestígios sólidos de narrativas coletivas: links para histórias pouco contadas e lembradas, a história da arte. É pelo manuseio e interação do público com essas caixas que essas narrativas se abrem e criam universos de referencias até então desconhecidos para o expectador. Ao mesmo tempo, essas caixinhas que desejamos vasculhar não se deixam conquistar: elas indicam caminhos, apontam endereços, sugerem laços. Desenham assim uma ponte que podemos percorrer. E se a imersão neste campo se inicia ao retomar as forças privadas, as histórias pessoais que nos escapam, o atravessamento biográfico na produção da artista, sua saída e continuidade estão anunciados no retorno ao público, no emolduramento de uma história coletiva que situa o que vemos em uma tradição artística que herdamos.

Pela via da experimentação, desfaz-se a ilusão do expectador. O olhar é ativo e por isso não pode ser nem neutro nem ingênuo. Desfaz-se também a ilusão da captura daquilo que esperava por nossa mirada, como construiu a crença empiricista e colonialista. O outro será para nós sempre incompleto, incontornavelmente descrito a partir de nossas possibilidades discursivas, limitado ao conjunto de nossas categorias descritivas, maior portanto, que tudo aquilo que pudermos dele saber. A invenção destas memórias passa a ser um campo de responsabilidades: sobre aquilo que queremos e fazemos lembrar, sobre aquilo que queremos e fazemos esquecer, sobre as estórias que construímos, e mais que sua permanência em um futuro, seus efeitos em nosso presente.

A exposição torna-se assim um campo de exploração que não se entrega ao olhar do explorador. O que temos são pontos de sugestão e inspiração, de aguçamento e sedução que oferecem uma interlocução na trama de múltiplas lembranças co-construídas.

Lembrar é inventar. Lembrar é também pertencer.

                                               Texto de Prof. Dr. Murilo Moscheta
                                                                  Departamento de Psicologia - UEM