A exposição “Das coisas que
esquecemos de lembrar” de Roberta Stubs e Gislaine Pagotto é um convite a
reflexão sobre a experiência do olhar. Em trabalhos anteriores Stubs concebia suas obras como explorações
sensoriais de nossos corpos e Pagotto explorava um olhar para a sutileza de
sombras projetadas por objetos de nosso cotidiano. Nesta exposição as artistas flertam
com o contemplativo e com o interativo e nos lançam numa reflexão sobre a
memória.Temos um filme dentro de um filme, temos imagens ampliadas, temos
caixinhas a serem vasculhadas e temos os objetos que concretizam as metáforas
articuladas na construção poética das artistas: os monóculos e pequenas
caixinhas de papel.
Sobre os monóculos, nos colocamos
a pensar no fascínio que eles causam: o de transformar em objeto a evanescente
matéria das lembranças. Selamos nestas pequenas lunetas plásticas cenas
congeladas em filme e as quais passamos então a guardar na concha das mãos, nos
bolsos, nas gavetas, no fundo de armários antigos... E por ser objeto podemos
perder o que esquecemos. Mas, por ser objeto, quando encontrado, podemos também
lembrar do esquecido?
Que memórias pode uma imagem
guardar? O que fica de fato guardado nos contornos de uma imagem? Estas
interrogações são reverberações da própria procura da artista. O encontro de
Stubs com os monóculos é carregado por um mergulho em sua história pessoal e
afetiva: em um deles ela encontrou uma foto de sua mãe que faleceu quando a
artista tinha 3 anos. O monóculo é o buraco da fechadura do tempo pelo qual a
artista espia. Contudo, a cena capturada em foto conta tanto quanto esconde. E
esse prisma plástico, pelo seu próprio modo de operar, parece dar conta de nos
apresentar a ambos: para se ver em um monóculo é preciso fechar um olho.
Assim, as imagens expostas nos
dão elementos razoavelmente reconhecíveis - como endereços que nos apontam a
uma direção – mas elas também guardam uma sedutora borda de imprecisão. Esta
neblina que a artista faz questão de manter não é defeito ou acidente de
produção. Ao contrário, é efeito estético deliberadamente provocado, como se
Stubs quisesse dizer que é neste borrão e não no foco, que talvez habite a
resposta de nossa procura. Neste neblinado vão, procuramos o fio invisível sem
o qual contas não são colar. Aos contornos esfumaçados pelo tempo, lançamos
nossos olhares curiosos e como crianças jogamos o jogo de adivinhar formas em
nuvens. Nas franjas destas cenas costuramos um enredo provisório chamado
lembrança. Lembrar é inventar.
Ao entrar na exposição, nos
deparamos também com uma infinidade de caixinhas espalhadas pelo chão, caixas
que nos fazem questionar o estatuto da arte, o endeusamento do objeto artístico
e o distanciamento provocado por essa exaltação. Caixas de papel são objetos
aparentemente banais, assim como algumas de nossas memórias ou alguns traços da
história da arte. Porém, é dentro da fragilidade desses objetos impermanentes
que encontramos vestígios sólidos de narrativas coletivas: links para histórias
pouco contadas e lembradas, a história da arte. É pelo manuseio e interação do
público com essas caixas que essas narrativas se abrem e criam universos de
referencias até então desconhecidos para o expectador. Ao mesmo tempo, essas caixinhas
que desejamos vasculhar não se deixam conquistar: elas indicam caminhos,
apontam endereços, sugerem laços. Desenham assim uma ponte que podemos
percorrer. E se a imersão neste campo se inicia ao retomar as forças privadas, as
histórias pessoais que nos escapam, o atravessamento biográfico na produção da
artista, sua saída e continuidade estão anunciados no retorno ao público, no
emolduramento de uma história coletiva que situa o que vemos em uma tradição
artística que herdamos.
Pela via da experimentação, desfaz-se
a ilusão do expectador. O olhar é ativo e por isso não pode ser nem neutro nem
ingênuo. Desfaz-se também a ilusão da captura daquilo que esperava por nossa
mirada, como construiu a crença empiricista e colonialista. O outro será para
nós sempre incompleto, incontornavelmente descrito a partir de nossas possibilidades
discursivas, limitado ao conjunto de nossas categorias descritivas, maior
portanto, que tudo aquilo que pudermos dele saber. A invenção destas memórias
passa a ser um campo de responsabilidades: sobre aquilo que queremos e fazemos
lembrar, sobre aquilo que queremos e fazemos esquecer, sobre as estórias que
construímos, e mais que sua permanência em um futuro, seus efeitos em nosso
presente.
A exposição torna-se assim um
campo de exploração que não se entrega ao olhar do explorador. O que temos são
pontos de sugestão e inspiração, de aguçamento e sedução que oferecem uma
interlocução na trama de múltiplas lembranças co-construídas.
Lembrar é inventar. Lembrar é
também pertencer.
Texto
de Prof. Dr. Murilo Moscheta
Departamento de Psicologia
- UEM